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Saturday, July 27, 2013

300 e mais três posts

O blog chega ao tri... trezen... post número 300 e para fazer algo diferente, pensei em algumas formas de deixar um algo único para registrar a marca. Pensei em sortear algo, mas não tenho público para isso e um sorteio até aumentaria o público, algo que não desejo para um blog intimista. Pensei também em deixar alguma música, mas nossa rica música popular brasileira carece de canções a respeito de blogs cujo número de publicações chega a um número assim redondo. Cogitei até a possibilidade de convidar algum amigo para escrever algo, mas não é legal constranger alguém com o que se tornaria uma intimação a elogiar o blog. 

Por fim fiquei com preguiça e vou só republicar três links de antigos textos. Não é um top 3, não tive muito critério de escolha e eles não estão ligados entre si. São apenas posts mais ou menos antigos que considero marcantes: o primeiro pelo prazer da escrita e os dois últimos por serem de momentos importantes. Os links estão no título de cada sessão.


Escrevi este post como uma piada com as teorias de conspiração: liguei o passado da Ponte Preta ao comunismo. É até maldade associar um clube de história limpa e pioneiro da integração entre negros e brancos a um regime genocida, mas talvez a teoria apenas ganhe pontos assim: quanto mais improvável e com envolvidos mais distantes, melhor ela soa. Só lamento ter escrito este post antes de ter lido Arquipélago Gulag, hoje teria sido muito mais severo ao escrever sobre os soviéticos.


Bolacha, para quem não lembra ou nem conhecia o blog até o ano passado, foi minha hamster. O hamster era a combinação perfeita para as condições ao meu alcance: fica engaiolado, guarda comida e por isso se vira sozinho por até dois dias, não dá muito trabalho e nem faz tanta sujeira. O post, portanto, é sobre sua chegada.

Era para a Bolacha ser uma companheirinha pacata, mas nem tudo correu como nos meus planos: ela chegou ao meu apartamento numa caixinha e na hora de entrar na gaiola deu um mergulho. Caiu de cabeça, ficou desacordada por uns instantes e acordou assustada. Mais tarde até cheguei a escrever outro post sobre toda a inquietação dela, crente de que a bichinha estava no cio, mas na verdade hoje suspeito de que ela apenas sentia ciúmes de minha namorada na época. Depois de quase dois anos ela acabou não resistindo e faleceu, mas isso é história para outro post.

Não é um improviso: o prato de ração realmente é maior do que Bolacha

Este último post é mais recente, foi escrito no último mês de maio. É uma homenagem a um amigo conhecido através da internet e, infelizmente, perdido antes duma oportunidade de conhecê-lo pessoalmente. Como Charlinho é atleticano, a republicação do post vem em ótima hora com a conquista continental do Galo.

Tuesday, July 23, 2013

O retorno do filho pródigo

Já escrevi sobre muitos assuntos nestes quase trezentos posts do blog. Comecei com as aventuras dum rapaz que começaria a morar sozinho, já fiz muitos posts sobre futebol, alguns sobre livros e cinema, outros sobre política e economia, mas dificilmente exponho conteúdo pessoal aqui. Fiquei em dúvida sobre escrever ou não este post, mas achei justo deixar algumas linhas sobre meu retorno à Igreja Católica. Contar sobre um retorno, no entanto, significa começar uma história pelo final, então voltemos ao início dela.

Quando criança eu acreditava muito em Deus, apesar de achar entediante a missa que minha família frequentava no Parque Industrial - e quantas broncas levei por não querer ficar quieto. Mais tarde, durante o começo da adolescência, ainda acreditava e rezava, apesar de não frequentar nenhuma igreja. A ruptura aconteceu quando tive problemas em casa: minha mãe lutava contra o câncer enquanto minha avó já havia sido dominada pelo Mal de Alzheimer. 

Rezei muito para que elas fossem salvas, mas o que pedi tão intensamente não foi realizado. Foi um erro de como depositar minha confiança: em vez de pedir por mais força para passarmos por aquele momento, pedi dois milagres. É como a menina deste vídeo abaixo, que poderia evitar sua queda, mas procurou apoio da forma errada. E cito George MacDonald: "Se Deus não apenas ouvisse nossas preces, como ele sempre faz, mas as respondesse como as queremos respondidas, ele não seria Deus nosso salvador, mas o gênio assistente de nossa destruição".



Por isso me afastei, mas pouco. O melhor era ter me afastado muito, assim eu teria evitado de sentir ressentimento e rancor. Repetia todos aqueles lugares comuns de adolescente revoltado, via todo padre como um cúmplice participante da Inquisição (depois de ler sobre o marxismo vi que ela foi brincadeira de criança), fazia questão de sempre expressar que não acreditava em nada - comportamento bem semelhante ao daquela pessoa de coração partido que vai ao Facebook diariamente reafirmar a superação do término dum namoro. Este texto AQUI resume bem como eu pensava quando tinha meus dezessete anos de idade.

Com o passar do tempo minha inquietação adolescente foi embora e comecei a ver também as contibuições positivas do cristianismo à humanidade: a piedade, o valor à vida, o voluntariado, o trabalho de missionários, a caridade, a construção de hospitais e universidades, a influência sobre grandes obras das artes (literatura, artes plásticas, música) e até na ciência. É até curioso que desocupados militantes gays, ateus e feministas organizem "beijaços", mostrem peitos murchos, desbatismo e façam outras macaquices para protestar contra a intolerância da Igreja - protestos possíveis apenas em sociedades construídas sobre o cristianismo. Não lembro de nada disso acontecendo em Teerã, por exemplo.

Então mudei um pouco minha posição em relação à Igreja. Ainda não havia me reaproximado dela, mas me afastei do grupo dos que a veem apenas como um antro de inquisidores beligerantes. O tratamento era de respeito e de reverência, mas apenas como uma formalidade dum velho conhecido. Mas o que fez com que eu voltasse?

A volta começou com o Conclave, quando toda a esfera progressista se retorcia, babava e urrava de ódio diante das notícias da escolha do substituto de Bento XVI. Se aquela corja propagadora de falsas boas intenções, sede de vingança e desonestidade intelectual sentia tanto rancor por uma instituição, como dito por eles, já moribunda, então aquela instituição ainda estava muito viva - e fazia algo que eu consideraria certo para ser tão desagradável aos "pogrecistas". Não é muito bonito assumir que voltei à igreja com esse pensamento de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo, mas foi como aconteceu e eu não seria completamente honesto se contasse outra história aqui.


O papa consegue torcer para o único grande argentino sem título da Libertadores. Acreditar em Deus é mais fácil
Tenho então frequentado a igreja do Carmo, no centro de Campinas, desde maio (apenas o post pega carona na visita do papa). Mesmo que uma missa seja curta e ocupe apenas uma hora da minha semana, é o suficiente para conseguir encontrar um pouco de paz, beleza e ordem em meio ao caos urbano. Além desse conforto e tranquilidade transmitidos pela igreja, uma época de inversão de valores e exaltação de personagens imorais, figuras como Deus, Jesus e os santos parecem ser as que podem mais seguramente ser usadas como inspiração e exemplo de comportamento. O último principal motivo é o anulamento da insignificância que se sente ao viver numa grande cidade: entre arranha-céus e numa massa de anônimos, o cristão se sente muito maior por fazer parte duma instituição de dois milênios, compartilhada com um terço dos habitantes da Terra e com sua fé baseada num deus onipotente, onipresente e onisciente.

Este retorno, no entanto, não muda tão drasticamente minha vida. Não pregarei para amigos ateus, não serei o chato que atribui todo sucesso e fracasso pessoal a Deus, não discutirei com pessoas que acreditam em Maomé, Shiva, Lúcifer ou no Monstro do Espaguete Voador. Já nem faço questão de encontrar o que desagrada aos progressistas, conforme falei pouco acima. Tentarei apenas agir da maneira mais cristã. Como disse São Francisco de Assis: "Cuida da tua vida, ela pode ser o único Evangelho que teu irmão lerá".

Tuesday, July 16, 2013

Dois machos, nenhum homem

Texto do The American Spectator traduzido para o português pelo Felipe Moura a respeito do caso Zimmerman-Martin. É uma abordagem diferente e trata dum aspecto cuja abordagem eu ainda não havia visto: a falta de hombridade dos dois envolvidos, tanto o adolescente metido a durão quanto o marmanjo afoito quando ameaçado.

Dois machos, nenhum homem
Escrito por Daniel J. Flynn, traduzido por Felipe Moura Brasil

Não se fazem mais homens como antigamente. Pode-se consultar um estudo dinamarquês que mostra a forte queda dos níveis de testosterona para a confirmação científica disso. Ou se pode mais facilmente assistir à cobertura completa de qualquer emissora de TV a cabo do caso Zimmerman-Martin, uma tragédia envolvendo dois homens tateando no escuro sobre como ser homens.

Do que quer que os protagonistas possam ser culpados, eles certamente são inocentes de serem homens. As seis mulheres que compõem o júri, muita embora não incumbidas de chegar a um veredicto sobre a masculinidade dos personagens centrais, todavia sabem a verdade sobre isso mais do que os demais observadores do julgamento. As venusianas conhecem os marcianos melhor do que elas mesmas se conhecem. E vice-versa – o que elas sabem de cromossomos x que só cromossomos x sabem?

Na contagem da maturidade, Trayvon Martin pode razoavelmente alegar inocência em razão da cronologia. Meninos de dezessete anos de idade muitas vezes agem como, na linguagem de Zimmerman, “punks f...dos”. A maioria se liberta disso quando cresce, mas o sr. Martin, infelizmente, não vai ter essa chance. Raramente, apesar da postura masculina exagerada deles, há adolescentes que se comportam como homens maduros.

O Twitter de Martin é como uma paródia de gramática pobre, com um vocabulário ainda mais empobrecido. Lá, ele é um "crioulo sem limite", as meninas que ele conhece são "putas" e "vadias", e a atividade extracurricular primária a que ele se dedica é a maconha. O sorriso com dente de ouro, as tatuagens, a suspensão de dez dias da escola e todo o resto parecem tentativas patéticas de afirmar sua virilidade. No entanto, como seus defensores apontam, Trayvon também gostava de balas Skittles e do Chuck E. Cheese. A apresentação que Trayvon afetou e o Trayvon que os seus defensores apresentam estão, como tantos que fazem a viagem da adolescência para a idade adulta, em guerra interna.

George Zimmerman, em contraste, projeta no tribunal uma imagem de gordinho pacato que não iria (não poderia?) fazer mal a uma mosca - e não da maneira Norman Bates. Talvez esse seja o efeito que seus advogados tenham pretendido. Mas isso entra em conflito com o que nós sabemos dele. De acordo com uma testemunha não identificada, Zimmerman sofreu espancamentos frequentes de uma mãe dominadora e teve um pai dócil que falhou em defender seus filhos. Seu instrutor de MMA descreveu-o como "fisicamente molenga", um estudante que não tinha capacidade atlética e "não sabia como dar um soco realmente eficaz".

Alguém perguntaria se as aulas de luta na jaula, a busca de uma carreira na aplicação da lei e uma arma de fogo mantida pronta para ser disparada eram as maneiras de Zimmerman descobrir sua masculinidade indefinida de uma forma semelhante à das tatuagens de Trayvon, de sua linguagem vulgar e de seu uso manifesto de drogas. Com o adolescente sem um pai em casa para servir como guia, e o líder vigilante do bairro que cresceu assistindo ao líder acovardado de sua casa, o passado da dupla alterou o seu futuro tanto quanto qualquer outra coisa.

Os gritos de Zimmerman e Trayvon batendo a cabeça de Zimmerman no chão não foram atos de homens. Um homem não é nem uma mulher, nem um animal. A resposta adequada a uma agressão de um adolescente de 71 quilos não é gritar por socorro nem pegar uma arma. É revidar com um soco ou, melhor ainda, subjugá-lo e lhe dar uma surra. Da mesma forma, um soco inesperado, as pancadas repetidas em um adversário caído e as batidas de um crânio contra o chão tampouco fazem jus às regras do Marquês de Queensberry [a base do boxe moderno]. Talvez a academia de "No Holds Barred Combate" [tipo de luta sem desqualificação nem contagem] em que Zimmerman se inscreveu aprovasse isso.

Suas famílias não tinham modelos masculinos fortes; a sociedade deles, menos ainda. Quatro em cada dez crianças americanas entram no mundo sem seu pai casado com sua mãe. Quando estudantes começam a apresentar características naturais ao seu sexo, esses rapazes cheios de energia são punidos com prisão e Ritalina. Qualquer jogo de maior contato - do queimado ao futebol - está sob ataque. O horário nobre da TV celebra os “almofadinhas” e retrata os pais como uns palhaços (vide Homer, de “Os Simpsons”, e Raymond, da sitcom “Everybody Loves Raymond”). Empregos que requerem as características físicas com as quais os machos são favorecidos foram terceirizados para robôs ou estrangeiros. Quando um comentarista perguntou "Os homens são necessários?" alguns anos atrás, aquilo refletiu a escassez ao invés da superficialidade desse artigo genuíno.

Civilizar os homens para fora da existência tem custado muito caro à civilização. Em vez de homens, obtemos imitações femininas carentes de beleza. Obtemos meninos perdidos que, por compensação, tornam-se bárbaros. Obtemos Sanford, Flórida, 26 de fevereiro de 2012.

Sunday, July 14, 2013

Costinha, o atual

Num dia qualquer, entediado e assistindo uma daquelas longas sequências de vídeos no Youtube, rodei por alguns trechos antigos de trabalhos de humoristas brasileiros. Revi material dos Trapalhões, da TV Pirata, do Sai de Baixo e da Escolinha do Professor Raimundo. Deste último, para ser mais específico, vi principalmente vídeos do seu Mazarito, nome quase esquecido do personagem interpretado por Costinha – este já um personagem por si só. Revi alguns vídeos dele, até ouvi mais uma vez (na íntegra) seu LP O Peru da Festa e notei uma constante: é mais fácil encontrar nos comentários do site quem diga que Costinha não poderia repetir estas piadas do que elogios ou até mesmo críticas às piadas.

Costinha contava mesmo piadas politicamente incorretas. Envolviam portugueses, negros, a classe média, religiosos, casos extraconjugais, bêbados e “bichinhas”, como ele dizia. Estas piadas, porém, não tinham a depreciação como artifício para alcançar o riso: quando um homem diz que quer “dar uma no escurinho” e um rapaz negro apelidado de Escurinho se sente ameaçado pela saliência alheia, há menosprezo aos negros ou apenas um não muito elegante jogo de palavras? Ou quando a portuguesa, no momento em que esconde um gambá contrabandeado em sua calcinha, pergunta ao marido “Mas e o cheiro?” e o gajo responde “O gambá que se vire!”, rimos só do engano de Manoel perante esta questão ambígua ou também da conclusão inusitada?

Há uma enorme diferença entre contar piada sobre certos personagens e com certos personagens. Se um humorista sobe num palco para fazer stand-up e diz “O grupo X é escroto por isso e aquilo”, o alvo da piada é o grupo. Mas se em vez disso ele usa este mesmo grupo como meio para desenvolver algo que vai além dos integrantes deste coletivo, então ele não faz piadas tendo os adúlteros, os padres ou os portugueses como alvo. Costinha seria mais bem descrito como um narrador munido de pequenas histórias retiradas da série Will & Grace do que como um homofóbico.

Arsenal eclético e justo: ninguém escapa
Se falar algo relacionado a um grupo, mesmo que não seja negativo, é visto com um semblante reprovador, interpretar um integrante deste mesmo grupo parece algo bem mais fácil de ser digerido. Só não entendo muito bem porque isso é visto como antiquado e ofensivo num programa como A Praça é Nossa, mas como algo cool nos vídeos do Porta dos Fundos. Talvez seja mais uma destas preferências misteriosas, como gostar de sertanejo universitário e rir de moda de viola, mas cada um com seu gosto.

Talvez o melindre seja direcionado apenas ao comentário vindo "de fora" e a atuação seja uma forma de enganar os defensores dos não ofendidos. Há até um termo muito bem bolado, foi cunhado pelo twitteiro @da_cia e resume o pensamento de que "só quem é sabe": é a argumentação ad corinthianum, ou seja, só pode falar de algum tema polêmico quem o vive de perto (exceto se você é conservador, aí você perde direito a falar, mas ainda tem o dever de ouvir). A condição do negro e seu cotidiano só podem ser discutidos entre os negros, apenas homossexuais podem falar sobre homofobia, feminismo seria assunto apenas do mundo feminino e assim divide-se a sociedade em cilos incomunicáveis onde fermentam-se convicções até que elas cheguem a seus limites, estando corretas ou não.

Para encerrar, uso um exemplo do grupo Hermes & Renato baseado numa piada de Costinha. É uma piada protagonizada por um personagem gay, mas notem como a piada usa o non-sense para fazer rir. Não achamos nenhum absurdo um humorista fazer gestos exagerados, falar afetadamente ou andar rebolando, ou seja, é aceitável que ele reproduza algo narrado por outro, mas o narrador não pode descrever exatamente a mesma cena por ela se tornar ofensiva. Não é o humor mais brilhante do mundo, mas não é justo que o censuremos por aceitarmos nos ofender com tão pouco.

Monday, July 8, 2013

Latindo

Meu cachorro, conhecido formalmente como Henrique China, porém não batizado de acordo com as regras do sacramento da Igreja Católica e por isso conhecido apenas como "China", acorda desnorteado. Levanta-se, caminha cambaleante até seu potinho de ração. Come, volta a deitar-se e não consegue dormir novamente. Volta ao quintal, mastiga o que resta dum chinelo velho meu e faz cocô atrás duma bananeira. Volta para dentro, morde a barra de minha calça e começa a puxá-la - esta é sua forma de mostrar que quer passear.

Pego a guia, prendo-a à coleira do meu amigo e vamos passear. O pobre China, coitado, já não é mais um filhote e mal posso dizer que esteja em sua melhor forma. De porte médio e pelos pretos e longos, tem seus primeiros pelos grisalhos no focinho. Os dentes ainda estão bem conservados, mas não arrisco mais usar um pano para brincar de cabo de guerra com ele. Ele manca um pouco desde que brigou com outro cachorro nos fundos dum bar e levou uma dentada de seu desafeto, o Fred, por isso hoje não consegue correr tanto ou simplesmente já não se impressione com mais nada e por isso não tenha mais pressa.

Caminhamos até a esquina. No caminho ele fareja algo aqui, ali e acolá. Para numa árvore, suspeita de algo, mas considera aquele farejado xixi irrelevante e seguimos em frente. Ele come um pouco de grama e, claro, vomita no caminho de volta para casa. Entramos, ele volta a dormir e acorda quando sente o cheiro do almoço. Após soltar alguns ganidos na porta da cozinha ele ganha um pedaço de carne quente, tenta comê-la sem sucesso e engole o naco todo numa dentada só depois que ele esfria. China ainda aguarda ao pé da mesa e, quando terminamos de almoçar, ele ganha um pratinho com nossos restos: algumas colheres de arroz, um pouco de feijão, uns pedaços de carne e até uma batata.

O "perro" devora sua refeição e deita sobre o capacho da porta dos fundos. Solta dois peidos enquanto dorme e, no terceiro, se assusta com o barulho e acorda. O cão do inferno se levanta, atravessa a casa e foge pela porta aberta. Cheira o lixo do vizinho e não encontra nada de agradável. Fareja algo interessante, um fogo consome seu ventre e acelera o passo: há uma fêmea por perto! China encontra seu alvo, uma cadelinha tão vira-lata quanto ele. Ela dorme sob a sombra duma árvore e é acordada por um nariz curioso. Ela se levanta, responde à curiosidade dele com suas próprias cafungadas e simpatiza com aquele desconhecido cão. O interesse é mútuo e, sem muita cerimônia, ele a domina: ali, na calçada onde algumas pessoas passam, o casal canino se entrega ao desejo....... Satisfeitos, eles partem cada um em uma direção: ela rumo a algum local coberto e ele, de volta à sua casa.

E por enquanto chega. Se continuar nessa narrativa monótona de alimentação, sexo casual, necessidades fisiológicas, filosofia de boteco e eventos insignificantes vou acabar escrevendo um romance do Bukowski.

China e parte da obra de Bukowski

Thursday, July 4, 2013

Vá e Veja

Há alguns tempo conversava com o amigo Giovanni Rolla e, ao me recomendar ver A Ponte do Rio Kwai, ele deixou claro: não era um filme de guerra, mas um filme sobre a guerra. Assisti este ótimo filme inglês e desde então tenho observado mais atentamente estes títulos onde o foco é o protagonista e não suas ações: O Franco Atirador, Nascido para Matar e Apocalypse Now estão entre os maiores nomes do gênero. Estas obras consagradas, no entanto, não me marcaram como um filme russo que achei digno de todo um post por aqui: Vá e Veja.

Originalmente chamado Иди и смотри e lançado nos Estados Unidos como "Come and See", foi gravado em 1985 e lançado como comemoração pelos quarenta anos da vitória soviética sobre a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Último trabalho da carreira do diretor Elem Klimov, foi visto por quase 30 milhões de pessoas apenas na União Soviética. O título é inspirado numa passagem do livro de Apocalipse a respeito da passagem dos Quatro Cavaleiros - Morte, Guerra, Fome e Peste - pela Terra. Uma curiosidade: os uniformes usados nas cenas eram todos reais, tão reais quanto as balas disparadas rente aos atores.

O filme começa com o protagonista, o menino bielorrusso Flyora, em sua busca por alguma arma que pudesse estar perdida perto de sua casa. Ele encontra um rifle e, apesar dos pedidos de sua mãe, une-se a um destacamento de combatentes. A princípio ele apenas cuida da manutenção do acampamento e é incumbido de tomar conta da retaguarda enquanto os partisans realizam manobras, sem realmente participar do combate aos alemães.

Flyora é surpreendido pelo bombardeio
Entediado, ele deixa o acampamento e nas matas conhece a garota Glasha. Um bombardeio interrompe as brincadeiras dos dois e aí começa a sequência de acontecimentos que constroem o enredo do filme: os jovens tentam retornar à casa de Flyora, partem em busca da desaparecida família do rapaz e encontram fugitivos do cerco nazista. O protagonista sai para buscar comida e rouba uma vaca, mas não consegue levá-la de volta aos seus compatriotas. Faminto, chega ao acampamento de refugiados junto com os nazistas e vê os habitantes do vilarejo serem dominados pela tropa nazista.

O enredo, que descrevi brevemente, não apenas parece caótico: ele realmente o é - e também brutal e desesperador. Vítimas são baleadas, queimadas vivas, humilhadas, espancadas e estupradas gratuitamente. Flyora passa quase todo o filme amedrontado, em fuga constante. Não há discursos edificantes nem diálogos profundos. Estas duas horas de crueza e violência são extremamente desagradáveis de se assistir, exatamente como um filme de guerra deveria ser. Graças a Deus não sei o que é viver uma guerra de perto (exceto pelo número de crimes violentos cometidos no Brasil anualmente) mas até de longe é óbvio que não há muito de orquestrado, previsível ou até lógico quando dois exércitos se encontram. Há também a decadência moral dos engolidos pelo combate: daqueles com a vida por um fio, em condição inferior à de um rato e também daqueles deuses de carne, osso e armamento pesado, senhores de vidas e almas.

Este  filme me lembrou do livro Nada de Novo no Front, do alemão Erich Maria Remarque. Erich lutou na Primeira Guerra Mundial e contou nesta obra como era o cotidiano dos soldados. Há momentos de pânico, terror e até infantilidade protagonizados por rapazes mal saídos das escolas, uma imagem muito mais verossímil de batalhões formados por rapazes de 18 anos de idade. Esta transparência expôs as entranhas da máquina de guerra alemã e gerou desconforto no país, mais notadamente junto ao partido Nacional-Socialista - livros de Remarque foram dos primeiros a serem queimados quando Hitler chegou ao poder.

Não creio que seja tão fácil conseguir uma cópia desse filme, eu inclusive a vi apenas porque fiz o download, mas recomendo a quem é fã de História e de filmes de guerra que se esforce para assistir Vá e Veja. Assim como A Queda, Stalingrado e Roma, Cidade Aberta, este é um filme impactante e instigador da reflexão. Até dá para fazer um contraponto dos filmes de guerra europeus com os americanos, estes portadores duma visão mais poética e os do Velho Continente, mais sisudos por estas memórias estarem tão mais próximas dos povos europeus. Finalizando: Vá e Veja é uma boa oportunidade de conhecer o cinema russo, desmistificar o cinema europeu e ver de maneira insuportavelmente realista o que é uma guerra - pelo menos aos olhos dos russos.
 

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