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Monday, September 30, 2013

O Arquipélago Gulag

Aleksandr Solzhenitsyn
No começo do ano, quando surgiu a polêmica causada pelo texto de Reinaldo Azevedo sobre o "metade gênio, metade idiota" Niemeyer, li uma coluna de Flávio Morgenstern no site Implicante e fiquei curioso sobre uma trilogia que até então eu desconhecia e que era minuciosamente detalhada nesta defesa ao "Tio Rei". A trilogia O Arquipélago Gulag, escrita pelo novelista, ativista, Nobel de Literatura e ex-capitão do Exército Vermelho Aleksandr Solzhenitsyn (1918 - 2008) durante seus oito anos de reclusão num gulag - apelido dos presídios criados para os campos de trabalho do regime comunista - narra o terror vivido pelas vítimas pelo regime da extinta União Soviética.

Eu já esperava uma leitura excruciante e perturbadora, mas jamais esperei um banho de sangue tão abundante: manifestações de rua reprimidas a tiros, execuções gratuitas, estupros, humilhações de toda espécie, tortura, abusos de poder realizados por líderes excêntricos e exílio - primeiro de pessoas e depois de povos inteiros. Tudo isto parece uma distopia fictícia, distante e improvável de Orwell, mas é uma compilação de relatos vividos por Aleksandr e coletados com cerca de duzentos outros internos de unidades do sistema prisional.

A longa trilogia percorre o mesmo trajeto dum sobrevivente dos campos soviéticos e começa com a prisão de suspeitos de atividade contrarrevolucionária. O autor do livro, por exemplo, foi preso no começo de 1945 por fazer comentários jocosos com outro oficial sobre os equívocos estratégicos de Stalin durante as campanhas da Segunda Guerra Mundial. Reclamações feitas entre amigos, pouco entusiasmo ao comentar notícias recentes do governo ou até mesmo interesses afetivos poderiam ser usados para denunciar inimigos do povo: caso um homem estivesse interessado por uma mulher casada, bastava denunciar seu marido e pronto, em pouco tempo ele estaria preso e o caminho, liberado. Se a denúncia e as provas fossem inconsistentes para se obter uma condenação, havia como arrancar uma confissão do acusado utilizando formas de tortura como esmagamento de genitais, queimaduras feitas com ferros incandescentes, privação de sono e outras atrocidades das engenhosas mentes dos torturadores da NKVD. Uma agência de inteligência precisava ter trabalho para sobreviver e, como um câncer, crescia e transformava qualquer um em opositor do partido.

Uma vez obtida a confissão condenação era formalizada através dum julgamento de faz-de-conta, sem testemunhas, júri, registro da audiência ou ponderação do juiz a respeito do caso. O escritor comenta a ironia da Revolução ter sido feita para lutar contra a tirania dos czares, porém atentados contra a nobreza e planos de golpes eram punidos com dois outrês meses de prisão domiciliar enquanto a pena para condenados sob o recém-criado artigo 58 (sobre crimes políticos) era de dez anos de trabalhos forçados - e depois de vinte e cinco anos. O primeiro livro é encerrado com capítulos a respeito do precário transporte dos condenados e a chegada dos sobreviventes aos campos. Uma curiosidade desta primeira parte da trilogia: eu achava que os gulags eram obra do governo de Stalin, porém Aleksandr informa que eles nasceram já sob o comando de Lenin e continuaram a existir mesmo após a morte do ditador georgiano.

Mapa dos campos

O segundo livro descreve os perfis dos habitantes do arquipélago. Presos políticos, ladrões comuns, ajudantes dos carcereiros, dedos-duros, mulheres, crianças, poetas, religiosos, estrangeiros e até membros do Partido viviam amontoados e, vá lá, em até relativa harmonia entre si. Os partidários eram o grupo mais interessante: Solzhenitsyn tentou conversar com um jovem comunista e o questionou sobre sua prisão, porém ele se manteve irredutível e respondeu às questões sempre com uma correção na ponta da língua: ele não estava preso porque era culpado, mas por um erro de algum funcionário; a administração era impecável, então o funcionário errado na verdade era um sabotador; este ato de sabotagem não chegou a acontecer por incapacidade de seus compatriotas, mas por astúcia do sabotador, e assim por diante outros contorcionismos lógicos poderiam ser feitos enquanto nenhum dos interlocutores desistisse da conversa.

A última parte da trilogia fala sobre o trabalho forçado, sobre as primeiras rebeliões iniciadas após a morte de Stalin e de Beria e também sobre algumas greves realizadas pelos presos - ironicamente, revoltas dos trabalhadores contra os revolucionários da causa trabalhista. O final do livro trata ainda sobre o abrandamento do trato dos funcionários do sistema carcerário com os presos, sobre o exílio de povos inteiros e do autor no Cazaquistão e, após sua libertação em 1953, de seus esforços para denunciar e combater as condições dos que permaneceram presos.

Como escrevi no começo do post, tudo isto parece distante e até inacreditável, porém não faz muitos anos que ditaduras de proceder semelhante ao dos soviéticos passaram pela América do Sul e constantemente vemos notícias sobre desrespeito a liberdades individuais semelhantes aos relatados na trilogia Gulag, como: monitoração de dados privados, censura, tentativas de restrição ao armamento da população, repressão a manifestações e até o "disk-denúncia" para traidores da pátria. Recomendo a todos que leiam a obra, isto é, a todos que conseguirem encontrá-la: precisei comprar os livros no exterior porque não os encontrava de forma alguma por aqui. Mesmo se isso não for possível, é importante que se pesquise e que todos saibam deste período sombrio e sobre os milhões de vítimas de Stalin.

"Depois que li este livro comprei um rifle!" - Melhor crítica impossível

Tuesday, September 17, 2013

Interseção


Há três anos e alguns meses moro numa zona de interseção entre dois bairros: quando digo meu endereço automaticamente acrescentam um "Cambuí, né?" ao final do nome da rua, porém preciso didaticamente corrigir com um "na verdade, Centro". Às vezes é mais fácil mesmo falar Cambuí, principalmente para não gastar tempo com debates sobre loteamento e a forma como a Prefeitura enxerga as divisões da cidade, mas às vezes é mais conveniente dizer que moro na região central - ainda mais se eu puder evitar de ser chamado de "playboy" em tom pejorativo. A peculiaridade sobre essa pequena área entre a Júlio de Mesquita e a Anchieta, porém, é reunir características positivas e negativas dos dois bairros que a cercam.

Há espaço para a loja de roupas exclusivas, o café sofisticado, o alfaiate fino e até um restaurante renomado. Suspeito que exista até uma unidade do tal colégio Hollister por aqui. Não o vi ainda, mas já vi muitos jovens uniformizados com camisetas desta marca. Por falar em marcas de roupas, por aqui dá para sair de casa trajado com um certo desleixo - aquela desarrumação calculada - e não chamar atenção negativa, mas também não é considerado exagero se arrumar e até se maquiar para passear com o cachorro ou sair para comprar cigarro.

Comentei dos comércios mais requintados, mas estes seriam o "lado Cambuí" deste corredor urbano. A padaria simples do pingado servido no copo americano, o boteco "copo sujo" e os salões de beleza com aquela tradicional aura de intimidade e fofoca da clientela formam o contraste com a opulência do bairro mais rico, armado de bistrôs, bares de contas exorbitantes e centros de estética. Este é o rincão dos que saem de casa de chinelo, bebem cerveja nas calçadas dos bares e só aceitam pagar R$ 10,00 num misto-quente da Riviera caso estejam com namoradas novas.

Nutritivo, saboroso e com oscilação de mais de 100% no preço

Agora saindo dos exemplos vagos surge um exemplo bem promissor. Como já citei em outros posts, moro perto do Red Lion e de algumas freelancers eróticas. Apesar de ser uma área de atuação tão condenada ou exatamente por causa disso, este núcleo é cuidadoso em relação ao seu comportamento para não incomodar a vizinhança com barulho e falta de pudor. Cabe até um elogio: neste período de convivência com estes vizinhos não tive problema algum com eles. Já aconteceu de eu ouvir as risadas e gritos de alguns bêbados eufóricos ainda nas primeiras horas da madrugada, é verdade, mas não dá para culpar um bar pelo contentamento de seus clientes. 

Pois bem. No último domingo ouvi música alta e achei que vinha do Centro de Convivência. O som não vinha da direção que eu esperava, então achei que alguma banda tocava no Novo Hambúrguer, o boteco mais próximo. Achei até que poderia vir do Red Lion, num lapso de cuidado. Olhei pela janela e percebi que estava enganado: um edifício recentemente construído estava todo iluminado e testavam uma aparelhagem de som com música gospel. Sim, é isso mesmo: o contraste já supracitado será intensificado com a coexistência de um puteiro e uma igreja. O curioso é que posso somar todo o barulho vindo do Red Lion nestes três anos e não vai chegar nem perto da passagem de som (não foi nem um culto de verdade ainda) deste vizinho que ainda nem chegou. E impressiona como o mundo dá voltas: hoje torço para que uma igreja se inspire num prostíbulo para não se tornar um incômodo.

E o que vem por aí? A vizinhança pressionará a igreja para manter o volume baixo? Qual igreja será essa, aliás? O Red Lion se apoiará sobre o precedente, esse permissor de erros repetidos, para fazer barulho? O que será das moças que oferecem seus corpos e habilidades na calçada oposta? E o mendigo negro, gay e obeso que invadiu um terreno baldio vizinho da igreja, deixará de ser um campeão da exclusão e se tornará um irmão? Parafraseando o ponderadíssimo maestro das palavras e paladino do futebol arte Wianey Carlet: Red Lion ou igreja estrondosa, o futuro dirá quem foi melhor para o bairro.

Monday, September 2, 2013

Precipitação

Cláudio chega a sua casa desanimado. É começo duma madrugada de sexta-feira e ele conta com poucas horas para dormir e acordar antes de trabalhar, mas não tem sono. Deitado sozinho em sua cama e com as luzes apagadas, ele reprisa cada cena do péssimo encontro do qual acabou de sair. A falta de fluência da conversa, as gafes cometidas com perguntas incômodas, as lamentações de Marcela sobre seus antigos relacionamentos e seu crescente desinteresse durante o jantar transformaram estas poucas horas numa dolorosa e constrangedora experiência. Chegara a refletir se era cabível se desculpar a sua convidada por fazê-la sair de casa para passar por uma frustração destas, mas ele também se decepcionara e calculou que as decepções já estavam equilibradas. Despediram-se com um desajeitado "Então tá legal" e dois beijinhos na bochecha, uma tradição que Marcela levou do Rio de Janeiro, para deixarem bem claro que os dois não chegariam mesmo a ser um casal. Entre estas e outras ruminações e considerações, Cláudio consegue dormir.

Na manhã seguinte Cláudio chega ao trabalho e antes até de ouvir um "bom dia" é recebido por seu colega Felipe com uma dúzia de perguntas. Conta tudo o que deu errado: como não tinham nada a ver um com o outro, que a escolha dum jantar a dois era muito formal para um primeiro encontro e que Felipe deveria estar presente para quebrar o gelo nestes encontros que propunha - ou que pelo menos achasse amigas solteiras com mais chances de sintonia. Felipe pede desculpas e já sugere dois novos nomes, mas Cláudio os recusa:

- Você está solteiro e vive me recomendando amigas solteiras... aí tem alguma coisa de errado!
- Que desconfiança é essa!? Nunca ouviu falar que em casa de ferreiro o espeto é de pau? - indaga Felipe.
- Jamais ouvi uma desculpa mais esfarrapada. Nunca vi alguém ser altruísta em matéria de relacionamento. Além disso, se eu saio com as melhores das suas amigas e só tenho dor de cabeça, não consigo imaginar como anda a sua vida afetiva.
- Mas não é uma desculpa, é a realidade - Felipe começa a se irritar. E minha vida afetiva vai muito bem, obrigado, senhor fala-sem-conhecer.
- Perdão, perdão... mas ficamos assim: agradeço muito a sua proatividade, mas deixe que me viro sozinho a partir de agora - finalizou Cláudio.

Assim ficam acordados e Felipe não se dá mais ao trabalho de achar uma mulher para o amigo. Cláudio adota postura defensiva, quer evitar que se repita uma situação como a vivida com Marcela. E desta forma ele segue seus dias: preocupa-se com o trabalho, faz suas aulas alemão, gasta algumas de suas horas livres a pedalar pela cidade. Sai com Felipe esporadicamente, mas sem o "instinto de caça" defendido pelo amigo. Suas prioridades são apenas beber algumas cervejas e ver gente diferente, sem ambições de encontrar alguém nestas saídas.

Algumas semanas passam e Felipe, com seu inabalável ímpeto casamenteiro, propõe que Cláudio conheça uma amiga. Este mal começou a recusar a oferta e é advertido: "Calma! Desta vez vai ser diferente, ela não é minha amiga, mas da Stephany, moça com quem estou saindo. Nós quatro podemos sair juntos na quinta-feira: a Ste e eu; a Tati e você". Cláudio pondera e vê que a proposta é boa, principalmente por não carregar a rigidez da obrigação dum encontro. E assim o quarteto divide duas pizzas, alguns chopps e muitas risadas. Tatiana é gaúcha de Passo Fundo e viera à cidade para estudar e conseguir seu mestrado. Além de engraçada, bela e inteligente, ainda tem o sotaque cantado para lhe garantir um toque de exotismo. Cláudio não resiste e nesta mesma noite escreve um bilhete num guardanapo para convidá-la: propõe um encontro na noite de sábado. Ela confirma com um sorriso e devolve o guardanapo com seu número de telefone anotado.

No dia combinado ele a busca e vão a um bar próximo ao apartamento dela. O papo flui por horas e cobre todo tipo de assunto: viagens feitas e desejadas, as cidades de origem de cada um, hobbies, trabalho, estudos, filmes favoritos, livros lidos e objetivos de vida. Vão embora quando os garçons começam a varrer o chão do bar e desligam a música. No carro conversam e riem até chegarem à frente da casa de Tatiana. Eles se beijam agressivamente e ela não hesita em convidá-lo para entrar. Cláudio aceita e após duas taças de vinho os dois terminam a noite na cama de Tati.

Ela dorme nos braços dele e Cláudio relembra as últimas horas: o rápido entrosamento com a gaúcha, seu jeito cativante, o sorriso doce e a forma como a morena o ouvia atenciosamente, mas também sabia ser interessante e o seduzia, sentido por sentido. Mas uma fagulha de insegurança percorre insistentemente seus pensamentos: valeria a pena arriscar um relacionamento mais longo com uma mulher que já o aceitou em sua cama com tanta rapidez? E se encontrasse outro homem durante o namoro, agiria da mesma forma? Já teria transado no primeiro encontro em outra ocasião?

E sem se dar conta de que também transou no primeiro encontro, Cláudio joga fora a oportunidade de construir algo com esta incrível mulher. Não leva em consideração que talvez ela tenha ficado impressionada com ele, que já tenha decidido neste primeiro encontro levar adiante um possível relacionamento mais duradouro ou a simples possibilidade dela estar num momento em que se sentia solitária. Também não compara este encontro com o anterior e perde a chance de notar que se há ocasiões em que tudo pode dar errado, também há os encontros em que tudo funciona cinematograficamente bem. Após desconsiderar todas as semelhanças e a agradável noite compartilhada, Cláudio deixa que uma projeção sua afaste a tão espetacular (e real) mulher de duas horas atrás. E Tati? Vai lamentar não receber outra ligação, talvez chore, provavelmente se arrependerá, mas achará alguém antes de Cláudio - e tomará cuidado para não repetir um erro que sequer chegou a cometer.


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