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Thursday, January 14, 2016

Na rede

Hoje, 14 de janeiro de 2016, duas notícias sobre óbitos circularam pela internet. A primeira foi a do comediante paraibano conhecido como Shaolin, cujo corpo já estava paralisado desde que ele sofreu um acidente de carro em janeiro de 2011 e que foi vítima duma parada cardiorrespiratória nesta manhã. A outra foi de Alan Rickman, ator inglês cujo fim veio na forma dum câncer. Seus trabalhos mais conhecidos são suas interpretações do vilão Hans Gruber em Duro de Matar e de Severo Snape em toda a saga Harry Potter.

Além deles, soube também do falecimento duma conhecida. Inicialmente, seria apenas um desses contatos encontrados casualmente pela internet, que normalmente viram apenas mais um número em nossa lista de amigos e mais uma pessoa para colocar posts em nosso feed. Não chegamos a nos conhecer pessoalmente e ela morava em outro estado, mas mesmo assim pudemos nos falar em algumas ocasiões. Para ilustrar o caso, chamemos essa pessoa de Tatiana (nome fictício).

Fazia algum tempo que eu via alguns posts melancólicos de Tatiana em seu perfil do Facebook. Ainda que vagamente, eu notava que falava até frequentemente sobre a morte e sobre um sofrimento insuportável. Através de posts de amigos e parentes dela no decorrer destes meses de amizade entre nós dois, percebi que ela lutava contra alguma doença, mas não era claro qual era sua enfermidade. E por falta de intimidade, eu torcia por Tatiana de longe, sem me sentir muito à vontade para lhe perguntar o que acontecia e como ela estava.

E hoje surgiu uma publicação em que se confirmava seu falecimento. Alguém “herdou” seu perfil e conseguiu escrever um post explicando que Tatiana havia passado por um transplante e se recuperava bem, mas uma recaída súbita fez com que seu corpo sucumbisse. Mensagens de pesar e solidariedade acompanhavam o anúncio até que uma nova publicação revelava uma nova versão da morte de Tatiana.

Ela teria passado, realmente, por um transplante de fígado, do qual se recuperava bem. O problema começou com uma viagem não permitida a São Paulo para encontrar um ex-noivo, de quem já havia se separado a anos e que agora estava com outra mulher. Tatiana tentou encontrá-lo e ele a proibiu de ir a seu local de trabalho, que também é onde ele reside. Ela o pressionou, ameaçou se matar e disse que ele teria de escolher entre ela e a mulher atual. Ele escolheu a atual e Tatiane tirou sua própria vida (o post é um pouco detalhista sobre isso, mas creio que não seja necessário ir tão longe).

Confesso que suspeitei dessa possibilidade devido aos posts mais sombrios que essa garota de apenas 24 anos compartilhava, algo um tanto inesperado para uma rede social onde “nunca conheci quem tivesse levado porrada”, como escreveu Fernando Pessoa. Assim como eu, imagino que outros também imaginavam esse desfecho para a história, mas com que cara levantaríamos essa suspeita? Fiz o que estava ao meu alcance: comentei na publicação, pedindo que a retirassem do ar para preservar a imagem da moça. E mais de uma pessoa respondeu que era desta forma que ela se manifestaria, de forma transparente, direta. No fundo eu sabia que aquilo era a verdade.

Já vi inúmeras postagens em que ela se despedia dos amigos, lamentava sua vida e sua dor, assim como falava de recomeços e novas tentativas de seguir em frente com sua vida. Lembro dum episódio em que ela divulgou uma foto de sua própria mão com hematomas e até cortes nos nós dos dedos, causados por alguns socos que deu na tela de seu celular. De fato, é capaz que ela enviaria uma mensagem do outro lado explicando exatamente o que houve, com a mesma riqueza de detalhes da autora da publicação.

Graças a este exemplo mais extremo, comecei a refletir sobre tanto conteúdo tornado público quando talvez não deveria ser registrado nem intimamente. Selfies em velórios, discussões (ou “barracos”, melhor dizendo), check-ins em motéis, vídeos de acidentes e mortes que talvez nem o próprio Datena exibiria, debates sobre funcionamento intestinal, entre outros – citei apenas alguns “top of mind”. E nem adianta eu dizer que ninguém quer ver isso, porque eu normalmente não quero, mas há sempre uma multidão curiosa.

Ainda sobre multidões de curiosos: agora o Big Brother Brasil está prestes a retornar em mais uma edição e aquelas velhas discussões sobre o programa ser ou não cultura (como se não ser alta cultura significasse que ele não é cultura de forma alguma), que vale mais a pena enfiar a cara nos livros – mesmo que talvez sejam apenas os de colorir, etc, etc. Alguns amigos às vezes questionam porque a televisão insiste em oferecer apenas bunda, futebol e humor de quinta série em vez de oferecer uma programação mais rica, mas aí eu sempre lembro da Cultura, que oferece essa programação gratuitamente e quase ninguém a assiste. E também penso no Tião, que acorda de madrugada, pega dois ônibus, trabalha pesado para ganhar pouco, pega mais dois ônibus para voltar à sua casa e à pilha de contas que paga todo mês. Todos sabemos quem ganha a atenção de Tião numa disputa entre um filme de Ingmar Bergman, um livro de Thomas Mann e o jogo de seu time.

Estou divagando, mas não tem problema. Este post é de perguntas e não de respostas. De volta a cada Tião e dona Maria que há por aí, atrás dum televisor ou duma tela de onde eles acessam a internet: será que não é prepotência nossa quando nos julgamos iluminados e tentamos ditar o que é melhor para eles? Posso achar uma comédia do Leandro Hassum uma porcaria (não que ele se incomode em fazer algo grandioso pela sétima arte) e indicar algo que eu considere muito superior, como Amadeus. O filme de Milos Forman tem um certo status cult, mas por ser vencedor de quase dez prêmios no Oscar de 1984*, um cinéfilo pode considera-lo apenas o pico da ponta deste iceberg chamado “Cinema” e recomendar que o público procure alguma obra pouco badalada de algum diretor obscuro nascido em algum país esdrúxulo em tempos distantes. E essa experiência pode ser rica, diferente, suprema e causar um sono que, se não tratado, pode se tornar um coma. Ponto para o Hassum e para a mocinha que se deixa filmar brigando com uma colega de classe na porta do colégio: ambos têm o mesmo êxito em suas tentativas de alcançar público abrangente. E os fãs de Forman e outros diretores muito mais obscuros que continuem degustando suas obras favoritas – até porque elas correriam o risco de serem chamadas de “modinha” caso caíssem no gosto popular.


* Um desabafo: mais de uma vez ouvi uma “regra” de que se uma obra ganhou um Oscar de melhor filme, automaticamente ela pode ser considerada ruim. Gostaria apenas de aproveitar o espaço para deixar registrado que acho esta associação muito monga, mas menos do que quem a reproduz por aí.

1 comment:

  1. Cara, acho realmente que rola um excesso de exposição nas redes sociais. Em 2014 uma amiga minha faleceu e tinha foto até do túmulo dela. Achei meio desnecessário.

    Quanto a esse papo de ganhador do Oscar, não sei se você sabe, mas eu ando numa tarefa de assistir todos os filmes indicados ao Oscar de melhor filme das últimas décadas e a única conclusão que eu consegui chegar com isso é que a academia não tem o menor critério para essa escolha. Vi alguns filmes fantásticos. Vi filmes emocionantes. Vi filmes que só estavam ali pela forma diferenciada de apresentação da história (que nem sempre era boa). Vi filmes que não fazia a menor ideia do porquê estarem ali.

    Ou seja, assistam e tirem suas conclusões individualmente. Não dá pra colocar tudo no mesmo balde.

    Quanto ao Leandro Hassum, não entra nem na questão se é cultura ou não. O problema é que ele se propõe a ser engraçado e não é. É OUTRO questionamento.

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