Pessoas da minha geração devem se lembrar de Cegos, Surdos e Loucos, filme de 1989 estrelado por Richard Pryor (Wally, o cego) e Gene Wilder (Dave, o surdo) de presença constante no Cinema em Casa, do SBT. A história conta como os dois protagonistas testemunham parcialmente um assassinato e, mesmo após terem seus depoimentos descartados pela polícia, ambos ainda são perseguidos pelo autor do crime. Cito o filme por uma cena específica na qual Wally é alertado de que tentar se passar por alguém com visão normal seria tentar se passar por um homem branco. Dave larga seu jornal (segurado de cabeça para baixo) e faz um escândalo por descobrir que não é branco. Diz que terá que fazer ajustes em sua agenda, imagina o que seu amigos dirão e até pergunta se seu pai sabe disso.
Uma interpretação mais afoita pode ver esta cena como racista, porém é o contrário: o desespero de Wally vem de sua consciência da segregação, do preconceito e da discriminação vindos da diferença da cor da pele. Wally, porém, vive num país onde o racismo foi praticado e mais tarde combatido abertamente, mas como reagiria a essa descoberta um brasileiro, habituado a uma cultura que trata brandamente o passado escravagista e a botar panos quentes sobre a segregação que ainda aconteça, embora muito se diga que no Brasil não existe racismo?
Foi um choque parecido com o de Wally que senti após ler Negros Heróis, obra do amigo Roniel Felipe. Jornalista, fotógrafo e agora lançando seu primeiro livro, o autor conta a história de dois personagens que, cada um em uma época, lutaram pelo negro, pelo pobre e pelo explorado em trabalhos iniciados em Campinas e de amplo alcance posterior. Apesar do enfoque sobre dona Laudelina de Campos Mello e "TC", como era chamado Antônio Carlos Santos Júnior, o livro também passeia pela história da cidade, do Brasil e do mundo e evidencia situações vexatórias às quais a população negra era submetida, às vezes num passado nem tão distante. E eu, como descendente de dois avôs negros já falecidos, tenho que apenas me limitar a imaginar quais constrangimentos narrados no livro também foram vividos por meus antepassados. Aliás, parafraseando um personagem de Mario Vargas Llosa do livro História de Mayta, eu olhei para o resto do mundo e virei as costas para o Brasil quando deveria olhar mais atentamente para meu país e seu povo, mas a leitura deste livro é um primeiro passo dessa nova caminhada.
Dona Laudelina |
A primeira metade livro é dedicada à já falecida dona Laudelina. Nascida em 1904, pouco após a Abolição mas ainda vista como posse de sua patroa, a mocinha de Poços de Caldas cresceu entre brigas com colegas brancas de classe e o trabalho como ajudante de sua mãe, faxineira dum casarão. Anos depois a jovem mineira saiu de sua cidade, casou-se em Santos e foi constituir família na capital paulista, cidade em que nasceram o filho Alaor e a luta de Laudelina pela melhoria de condições das empregadas domésticas. Extremamente ativa, a mineira ainda se alistaria à Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial, ocasião em que foi baleada e teve sua saúde de debilitada devido ao ferimento.
Encerrado o conflito internacional, Laudelina voltou a Santos para trabalhar na casa da portuguesa Bedecilda Vaz Cardoso, mãe de Hilda Hilst e "patroa muito liberal" como definiu a própria Laudelina. Mais tarde, no começo dos anos 50, Laudelina passou a morar em Campinas após a vinda de sua amiga e empregadora e na cidade deu continuidade às suas atividades como líder sindical após a morte de Bedecilda. Seguem-se então décadas de lutas, organização de eventos (inclusive um concurso de beleza feminino, o Pérola Negra), promessas esquecidas de políticos e apoio a outros grupos de empregadas domésticas. Mais de cinquenta anos de combate foram recompensados apenas com a Constituição Federal de 1988 e a garantia de direitos assegurados à classe defendida pela "Tia Nina". Os frutos haviam sido colhos e em 1991 a senhorinha mineira pode descansar em paz.
A segunda metade é dedica a Antônio Carlos, mais conhecido como TC (ou Tio Caio), nascido na cidade das andorinhas na época em que Laudelina chegava a Campinas. Integrante da primeira geração de moradores do São Bernardo, TC passou alguns anos no bairro recém-fundado antes de morar no interior de Minas Gerais, porém voltou - mesmo com intensos protestos - para dar prosseguimento à sua educação.
TC estudava, porém sem regularidade e aos dezenove ainda conciliava trabalho e estudos. Durante as aulas no Colégio Evolução conheceu Lumumba e Cidinha, casal de amigos muito versado sobre a história do negro e sobre a agitação cultural viva nos Estados Unidos. Com inspiração na postura altruísta dos Panteras Negras do período de Huey Newton e Bobby Seale, o grupo formado pelo trio e outros amigos passou a se encontrar para discussões e debates sobre a situação do negro.
Foto atual de TC |
Jonas Rocha Lemos, diretor do colégio, notou a movimentação entre os estudantes e os convidou para aulas de expressão corporal e teatro. Assim nasceu, em 1971, o Grupo de Teatro Evolução. TC participava como músico e o grupo logo começou a se apresentar na cidade e no interior do estado com uma peça de Lemos, Sinfonia Negra e reproduções de cenas de discriminação do Centro de Campinas. Aqueles anos da ditadura levaram o grupo a alguns confrontos e monitoração constante, mas as atividades foram mantidas apesar destes obstáculos. Mais tarde o grupo se desfez pois seus principais integrantes começaram a se espalhar e, nos anos 80, TC passou a realizar suas atividades na Casa de Cultura da Vila Castelo Branco, rebatizada de Casa de Cultura Tainã. O grupo até hoje trabalha para tirar crianças de rua e evitar que sejam seduzidas pela vida do crime, mas assim como Laudelina, TC e sua trupe precisaram de muito esforço para manter a Casa viva, mesmo com ordens de despejo e sem lugar para ficarem. Hoje a instituição mantém suas atividades na Vila Padre Manoel da Nóbrega e o "final feliz" da história foi a entrega do prêmio de Honra ao Mérito Cultural de 2006, entregue a TC por Lula e pelo então Ministro da Cultura Gilberto Gil.
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Com escrita leve e usando sua experiência como jornalista, Roniel conta duas vidas com ritmo bem cadenciado e torna a leitura agradável, apesar dos momentos de tanta tensão descritos em cerca de 170 páginas. Esta peça de jornalismo literário tem duas biografias ricamente descritas, tanto quanto dos ambientes e contextos em que seus protagonistas viveram. A obra, aliás, me lembrou em alguns momentos o filme Forrest Gump, em que o rapaz chega a protagonizar eventos da história americana. Laudelina conheceu um jovem Juscelino Kubitschek, foi apoiada pelo promissor vereador Orestes Quércia e TC testemunhou o nascimento de bairros antigos como a Vila Rica e a Vila Bela além de sofre com os anos de chumbo da ditadura.
Portanto, recomendo este livro a todos que queiram conhecer um pouco da história dos negros no Brasil, além de ter contato com biografias inspiradoras. Além disso, é interessante conhecer a história da cidade e de como ela conviveu com o racismo até recentemente: numa passagem, por exemplo, é dito que nos anos 50 ainda havia divisão de ruas para se fazer o footing, com negros na Glicério e brancos na Barão de Jaguara. Tenho apenas uma ressalva a respeito das imagens dos personagens contidas no livro, creio que elas poderiam receber mais espaço e não se limitar apenas ao final de cada uma das partes. Independentemente deste detalhe, a obra ainda vale muito a leitura. Para quem quiser mais informações ou comprar o livro, fica aqui o LINK para o site.
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