Li recentemente o livro O Mito de Sísifo, em que o autor argelino Albert
Camus define como “o absurdo” viver em função de projeções e planos para o
futuro, desenhados de forma vaga, como se o indivíduo não tivesse consciência
de sua inevitável morte. Uma vez que essa visão míope do futuro (teoricamente) longínquo
é superada e o indivíduo nota o absurdo em que vive, sua postura e modo de
viver são transformados irreversivelmente. O escritor analisa algumas soluções:
o suicídio filosófico (a negação do absurdo) de um lado e a revolta do outro,
com as possibilidades do homem agir de acordo com três papéis: do sedutor,
do ator ou do conquistador.
Camus usa como metáfora o personagem Sísifo,
que acorrentou a Morte para que os humanos não morressem. Depois de libertada,
a vítima voltou para buscar seu oponente humano e o matou, porém Sísifo enganou
a Morte novamente e fugiu do Hades. Os deuses, então, decidiram punir o herói:
ele é obrigado a carregar uma pedra até o topo dum morro e, ao cumprir sua
obrigação, o objeto voltaria à base para ser carregado novamente. O personagem
mitológico, inimigo da Morte e amante da vida, é condenado a uma tarefa sem
sentido. Esta seria, para Camus, a representação perfeita do homem absurdo.
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Há tradicionalistas que vivem o futebol intensamente e lamentam a forma como
o esporte deixou de ser beligerante e passional como costumava ser até o início
da década passada. Não são muitos que compartilham desse pensamento e,
ironicamente, estes abnegados tendem a ser torcedores ferrenhos de seus times. Quem
se incomoda com o esterilizado futebol moderno tem todo um arsenal de causas
para lamentar, indo do culto ao jogador acima da importância dos clubes às
punições e proibições cada vez mais patéticas,
porém como se revoltar e lutar contra uma instituição dominada por alguns
bilhões de pessoas que querem a manutenção do status quo?
Para cada insatisfeito com o futebol moderno há algumas dezenas de idiotas assim |
Todo esse público satisfeito com o futebol atual não se perturba e até
aprecia chuteiras coloridas, jogadores ciganos que se aposentam sem se tornarem ídolos dos clubes em que jogam ou a transformação de estádios em gélidos teatros, mesmo que este
torcedor more a centenas de quilômetros do local em que seu clube joga. Esta
derrocada do futebol é inevitável e não há nem forma de contorna-la: é a
seleção natural do show business e resta aos inadaptados apenas a extinção. Mas
qual é a possibilidade de vitória desses fanáticos quixotescos? Pior: qual é o
sentido de pelejar por uma causa perdida? Este é, portanto, o absurdo do
futebol: tomar consciência de que a modernização futebolística é implacável e,
sem possibilidade de recuo desta, ainda gastar tempo e esforços para combatê-la.
Camus recusa o suicídio filosófico e propõe a revolta contra o absurdo,
porém as formas de reação do indivíduo imaginadas pelo escritor - seja como
sedutor, ator, conquistador ou criador - são eficientes por serem propostas duma nova forma de viver, ou seja, não é necessário que haja consequências
favoráveis para que ela se prove válida. Quem toma consciência do absurdo no
futebol, no entanto, tem na revolta uma resposta de pouco ou nenhum resultado prático.
Se até Adriano continua no futebol, qualquer insatisfeito tem condições de continuar também |
Uma forma de reação seria relacionar-se de modo desapegado com o futebol, mais ou menos como um amante uma pessoa comprometida. Há um grau de envolvimento e a paixão, porém sem grandes ambições sentimentais e planos grandiosos para o futuro. E como fazer parte desta indústria esportiva sem alimentar seu funcionamento? Torcendo apenas para que seu time vença partidas e campeonatos, porém cético quanto a um retorno ao que era o futebol até os anos 90 e alheio às mudanças, modernizações, crises e demais patifarias que são cometidas em nome da “evolução” do esporte – que sofram com isso aqueles que mantêm um relacionamento estável com o futebol moderno, o amante apenas tem encontros casuais com objetivo de usufruir do lado prazeroso do esporte.
Outra forma de se manter em contato com o futebol seria a do esteta: ainda
assistir as partidas e até torcer, mas mais pela plasticidade de jogadas e gols
do que pela competição em si. É um método frio principalmente por permitir uma
distância segura, já que jogadas de efeito costumam extrapolar o “underground”
esportivo e um gol de bicileta pode até chegar ao Jornal Nacional, porém um possível obstáculo é o rareamento desses lances mais belos causado
pela queda do nível técnico dos jogadores. Não dá para esperar muito futebol arte dum campeonato nacional carregado nas costas por tantos ineptos, a não ser que acreditemos nos marketeiros jornalistas esportivos que veem como "golaço" até cobrança de pênalti.
Por fim, o abandono do futebol seria o ato mais extremo de revolta. Se não
há esperança nenhuma de reversão do cenário atual, por que insistir e manter
esforços que estão condenados a serem infrutíferos? O esporte foi transformado
em mercadoria e o torcedor em consumidor, então não é incoerente o boicote ou a
busca por outro “produto”. Reclamar dos penteados, das comemorações de gol
cretinas e dos egos inflados é uma penitência sem fim como a de Sísifo, o
personagem mitológico citado por Camus. O torcedor, no entanto, não foi
condenado a um castigo, não há deuses que lhe obriguem a carregar uma rocha
morro acima: ele é seu próprio condenador e se obriga a cumprir este castigo,
mesmo com a possibilidade de abandona-lo a qualquer momento.
Por mais que eu ouça e repita com meus amigos que o futebol já morreu e que
ele fica cada dia mais deprimente, nenhum de nós faz absolutamente nada para
remediar esse sofrimento. Pelo contrário, torcer parece às vezes se tornar uma
forma de expiação, uma busca pela redenção através das lágrimas e da dor. Eu,
como pessimista assumido, renuncio do futebol por não tolerar mais todos os valores
exorbitantes envolvidos no que já foi um esporte popular de amadores, a incompetência gritante dos dirigentes, o ridículo
nível técnico generalizado e a elitização das arquibancadas – e creio que tudo
isso apenas tende a piorar. Tenho ótimos amigos que conheci
na arquibancada e pela internet discutindo jogos, vivi momentos incríveis no
Moisés Lucarelli e em outros estádios, porém estes picos de felicidade
equivalem ao breve momento de satisfação que Sísifo sentiria ao alcançar o cume
com sua rocha, uma recompensa muito pequena perto da tarefa de empurra-la. Eu,
portanto, abandono minha condenação, já não consigo mais me manter fiel a este
sacrifício opcional.
Chega |