Era uma vez uma cidade do interior de São Paulo, não tão populosa, mas pioneira no esporte do estado: nela foi fundado o primeiro clube de futebol paulista. Com raízes populares, a equipe contava com atletas negros e operários de origem humilde já em 1900, mais ou menos uma década antes de várias outras agremiações começarem a brotar pelo Brasil para praticar o esporte, porém com hierarquias elitizadas e com participação permitida apenas a atletas brancos. Narrarei a seguir como a Ponte Preta, um time paladino da igualdade foi subjugado e até hoje sofre consequências por perseguições do passado.
Criado originalmente pelos jovens Pedro Vieira, Miguel do Carmo, Luiz Garibaldi Burghi e Antonio de Oliveira, a Ponte viria a se tornar rapidamente um agente de coesão das massas campineiras. Misto de cooperativa, time de futebol e instituição cultural, a Ponte Preta respirava e aguardava o nascimento de algum rival. Incomodados com a agitação popular, membros da elite da cidade se organizaram e criaram o time verde, já racista, segregador e discriminador desde seu berço. Os primeiros torcedores ponte pretanos, no entanto, receberam sarcasticamente as ofensas raciais e se auto-denominaram "macacos", um duro golpe ao rascunho de apartheid da casta dos barões do café e o primeiro cruzado (de esquerda) da luta de classes da cidade.
Assim foram o primeiro anos, com muitas ofensas, apelidos, brigas e disputas. Curiosamente, não há registro do resultado da primeira disputa, provavelmente uma vitória da Ponte abafada pela mídia "reaça" local que já era comandada por gente sem escrúpulos - não por acaso Júlio de Mesquita nasceu aqui e tem uma bela avenida com seu nome num bairro sofisticado da cidade. Os anos correram e assim as raízes socialistas da Ponte Preta se aprofundaram e se espalharam. Tornaram-se irmãos de outros clubes com o mesmo perfil, mais notadamente o companheiro Internacional de Porto Alegre, também alvejado pelo racismo nazigremista - os dois clubes fizeram um amistoso quando foram instalados os refletores do estádio da Ponte, uma óbvia alusão à estrela vermelha que é símbolo da luta operária. O Vasco, além do uniforme em comum, contou desde o começo de sua história com jogadores negros e até correu risco de ser barrado de campeonatos graças a essa honrável luta. Essa solidificação do pensamento igualitário na Ponte fez com que uma união de atenções intercontinentais chegassem ao clube.
Moysés Lucarelli, tio-avô do jogador e sindicalista Cristiano Lucarelli e pertencente a uma família historicamente ligada à luta contra o capital empenhou-se na construção dum estádio em Campinas. O projeto arrojado não contou com nenhuma construtora, mas foi erguido pelas mãos do próprio torcedor - motivado apenas pelo ideal e pela causa. O material utilizado, no entanto, foi parcialmente custeado pelo governo soviético logo após a vitória sobre o Eixo na Segunda Guerra Mundial. Assim foi criado o segundo maior estádio paulista da época, atrás apenas do Pacaembu. A obra foi batizada de Moisés Lucarelli em homenagem ao Grande Líder das Massas Alvinegras, porém ele recusou a proposta num primeiro momento. O nome foi imposto só depois, enquanto ele viajava à Argentina - a proposta do patrono era usar algo como Estádio Irmão Companheiro Vladimir Ilyich Ulyanov, ou apenas "Leninão", mas a homenagem stalinista e extremamente ligada à imagem do líder também agradou depois de algum tempo.
"Onde está a companheira Lohana?", indaga Stalin em visita ao Majestoso |
Essa pujança e a mobilização popular observados pareciam prejudiciais (onde já se viu, o populacho se organizando dessa maneira??) e assim um discreto, porém eficiente trabalho da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, anterior à mudança de nome para CBF) começou a ser orquestrado nos bastidores do futebol para que obstáculos surgissem no caminho da Macaca. Já chamada nos corredores da entidade reacionária de AAPP, Associação Atlética do Povo Proletário, diretores do clube campineiro primeiro sofreram com impedimentos burocráticos em tentativas de negociações de atletas. Como não conseguiam negociar jogadores, a solução foi cria-los e assim a categoria de base começou a gerar inúmeros talentos. Destaque para o Mestre Dicá: dezesseis anos de clube, maior artilheiro da história da Ponte, um camisa 10 clássico de rara habilidade e que jamais foi convocado à vestir aquela camisa amarela-ouro "capetalista".
Assim travaram uma guerra fria Ponte e CBD até 1977, o ano maldito da final do Campeonato Paulista em que o Corinthians encerrou seu jejum. O time do interior vinha com a melhor escalação de sua história e era apontado como favorito para a conquista da taça. Mesmo com a decisão disputada em jogos apenas na capital, perdemos o primeiro jogo no Morumbi e vencemos o segundo, feito proporcional ao episódio das Termópilas.
Recorde de público no Morumbi para ver a resistência popular |
No terceiro e derradeiro jogo, porém, um agente duplo do imperialismo infiltrado nos corredores do Moisés Lucarelli fez naufragar o time caipira. Rui Rey consagrou-se como calhorda, judas, traidor e sacripanta ao realizar a façanha de ser expulso de campo com apenas trezes minutos de jogo na batalha final. Pior: foi expulso por reclamação pelo árbitro (e policial militar à serviço do estado corporativista) Dulcídio Boschilia. A expulsão, previamente acordada, atendeu aos interesses do capital e o desfalque permitiu que não apenas o time paulistano alcançasse o título, mas teve um significado muito maior: oprimiu a massa do interior e concretizou a ditadura elitista no futebol. Rui, o hipócrita, não foi enviado a uma gulag, mas conseguiu asilo no Parque São Jorge e passou a jogar no adversário daquela decisão - uma traição ímpar.
Esse último golpe desferido pela ditadura brasileira, pela Confederação Burguesa de Futebol e pelo demônio capitalista estadunidense declararam o início dum severo embargo imposto à Ponte Preta. Surgiram outras represálias e deboches como a entrega do título do Brasileirão de 1978 aos rivais - uma afronta à nação pontepretana perpretada pelos integralistas, que se saudavam com a palavra "Anauê!", da língua indígena tupi. Outros clubes do interior também foram agraciados com o Paulista numa tentativa de seduzir a resistência vermelha campineira, mas o clube se mantinha forte. Agora há indícios de que a ideologia centenária começa a fraquejar com a construção dum novo estádio empregando uma construtora e, assim, será dispensada sua força de trabalho graças à rendição à mão de obra escrava. Fica agora o clube frente a uma encruzilhada: segue fiel às suas origens proletárias ou rende-se ao capital? Apenas o futuro pode dar essa resposta.