Como prometido (mentira, disse que só faria isso se me empolgasse), farei uma comparação entre duas histórias: a fictícia do náufrago inglês Robinson Crusoe e a real do ermitão americano Chris McCandless. Li as duas obras num curto intervalo de tempo e achei que seria interessante fazer este comparativo para encher linguiça manter o blog atualizado, porém os dois livros têm pouco em comum.
Além da óbvia vantagem de depender apenas da mão dum autor, o personagem irreal ainda foi agraciado com a generosidade do acaso: conseguiu chegar à ilha com mantimentos, armas, sementes que tornaram-se plantações de trigo, pólvora, algumas ferramentas, machados... Chris, no entanto, chegou ao Alasca com apenas um sanduíche e precisou recorrer somente ao que conseguia do solo, fossem vegetais ou animais - inclusive supõe-se que esta foi sua causa de morte, pois acredita-se que comeu alguma erva venenosa.
Além das fartas reservas do britânico, as condições também ajudaram e muito: enquanto seu "rival" encarou fim de inverno e outono no gélido Alasca, Robinson teve a facilidade de conviver com o clima tropical. Acredita-se que o local exato do exílio tenha sido a ilha de Tobago, próxima da Linha do Equador, sem neve, grandes predadores ou outros inconvenientes - e mais propícia ao desenvolvimento da agricultura graças ao clima e ao solo.
E se o terreno era produtivo, Crusoe era mais ainda. Apesar de jovem e da pouca experiência que teve com o campo e com a navegação, mostrou desenvoltura para se tornar hábil em várias artes: fazendeiro, padeiro, engenheiro (civil e ambiental), marceneiro, caçador, pecuarista, navegador, explorador, ferreiro... seu feito mais impressionante foi produzir uma canoa usando o tronco dum grande cedro - isto tudo para a embarcação ficar abandonada no meio da selva, já que era muito pesada para ser arrastada até o mar. "Alex Supertramp", muito menos habilidoso, conseguia apenas caçar esquilos e pequenas aves. Na única vez em que conseguiu um animal maior - um alce - teve tanta carne para curar que não conseguiu dar conta da tarefa e a perdeu toda. Sua casa improvisada era a carcaça dum ônibus, na verdade um ponto para permanência ativo apenas na temporada de caça.
Se a comparação é tão desleal devido à benevolência do escritor contrastante com os infortúnios dum andarilho que dependia do acaso, então resta apenas comparar o retrato do homem de cada época. Robinson é a personificação do eurocentrismo: tentou converter o indígena Sexta-feira ao cristianismo e ensinar seu idioma, mas não se interessou em nenhum momento pela cultura do sul-americano e mesmo após mais de vinte anos sem contato com ninguém, o exilado ficou ansioso não apenas para ter contato com outra pessoa, mas também pois teria a possibilidade de conseguir um escravo para auxilia-lo em suas tarefas. Outro criado foi o muçulmano Xuri, vendido pelo inglês após terem fugidos juntos - e nem essa cumplicidade pôde comover Robinson.
Robinson e Sexta-feira, por John Charles Dollman |
Assim como agia com outros homens, o habitante da ilha também não pensava sobre consequências ou repercussões de seus atos: matava seus animais de estimação, suas criações, bichos selvagens da ilha e até indígenas sem que sua consciência pesasse. Sua única hesitação foi com a possibilidade de matar alguns homens brancos, mas estes apenas foram tomados como prisioneiros - e depois condenados a ficarem na ilha enquanto o personagem principal navegava de volta à Inglaterra.
Chris, no entanto, tinha muito mais consideração pela vida e pelo meio. Sentiu verdadeiro remorso por abater um animal que não pôde ser comido - e até considerou esse ocorrido como a pior coisa que aconteceu em sua vida. Interessava-se genuinamente por todos que entrassem em seu caminho, com curiosidade de saber como era aquele novo conhecido e, mais tarde, até tentava ajuda-lo com conselhos. Como toda sua peregrinação e exílio foram opcionais, em nenhum momento se arrependeu de suas escolhas - inclusive esta foi sua última mensagem. Robinson, forçado por uma tempestade à permanência numa ilha, em muitos trechos do livro se diz feliz e bem adaptado, mas esquece toda essa inusitada felicidade a cada vislumbre de retorno ao Velho Continente.
Casal platônico: Chris e Tracy |
Enfim, se não dá para recorrer a Robinson Crusoe como um guia de sobreviência ou um relato da vitória do espírito humano, o livro serve hoje como um retrato de como o homem inglês via a si mesmo, ao resto da Europa e ao mundo há alguns séculos. Na Natureza Selvagem desenha o que talvez seja um ideal utópico de desapego material e até interpessoal - Chris conhecia muita gente, mas nunca mantinha estes laços. Então fica a constatação: apesar do período de isolamento entre os dois personagens ser algo tão marcante em suas trajetórias, esta característica é apenas um detalhe que os une, assim como Sancho Pança e Lula deveriam ser a cara um do outro, mas têm poucas semelhnaças além dessa.
Na falta de algo interessante para comentar, o magrão da foto parece do filho do prefeito da novela das sete...
ReplyDeleteTá, desculpa, não pude evitar.