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Monday, October 12, 2015

Nascente, correnteza e lago

Hoje, 12 de outubro, feriado devido à celebração da padroeira do Brasil e data de comemoração do dia das crianças, vemos nossas redes sociais serem inundadas por fotos de infância de nossos amigos. Reparamos em quem já tinha a mesma cara de hoje, nas roupinhas de épocas passadas, nas imperfeições corrigidas - com o indesejado apoio de aparelhos "freio de burro"ou botinhas ortopédicas - e em como eram nossos conhecidos antes da sequência de mudanças que acumularam até estarem como os conhecemos: a barba, as tatuagens, o ganho de massa muscular; o silicone, as pinturas do cabelo, as joias (legítimas ou nem tanto) e a infinidade de cosméticos testados e aprovados; as olheiras, os pés de galinha e partes do corpo que já começam a perder a luta contra a gravidade.

O dia das crianças vem e traz consigo o referido rejuvenescimento das imagens de perfil no Facebook. Consequentemente, levanta-se um questionamento entre alguns usuários: "Como essas criancinhas tão lindas e puras cresceram para virarem uns adultos tão filhos da puta?". Claro que é uma generalização exagerada, algo necessário para se alcançar o efeito de comicidade (espera-se), mas há alguma validade por trás desta reflexão, mesmo sendo ela tão grosseira. É como se cada uma daquelas crianças, como um novelo de lã com o qual um gatinho brinca, se desenrolasse e mudasse o rumo com guinadas bruscas aqui e ali. Perdão, mas a metáfora é falha: a linha solta permite que refaçamos o caminho de volta para descobrir exatamente por onde o novelo passou para estar onde está. Talvez seja possível rastrear um pedaço aqui e acolá do passado do outro, mas mais fácil e útil é tentar entender quem somos hoje e como esta construção foi feita.

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Há aquela frase de Heráclito, de que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Cabeçudo que eu era quando li isto pela primeira vez, achei que se referia apenas a seu sentido próprio e que tratava do movimento das águas. Mais tarde, mudei minha forma de enxergar o dito - confirmando o que disse o pensador grego - e compreendi seu sentido figurado: a frase é sobre a perenidade da mudança, seja do rio em seu correr ou do próprio banhista. Já tentei contestar a frase quando me lembrei do ciclo das águas, que correm, evaporam, chovem e voltam a correr; algo como um eterno retorno de circunstâncias que se apresentam novamente e novamente ao banhista, porém esta repetição, ao ser considerada de maneira menos literal, ocasionaria uma mudança no banhista.

Swimming Hole, de Thomas Eakins
Assim revisitamos e compreendemos de formas diferentes fenômenos similares ou até repetidos. Podemos mudar completamente a forma como enxergamos, apreciamos e compreendemos livros, filmes e outras obras. Eu considerava Woody Allen um porre quando vi Poderosa Afrodite pela primeira vez lá por volta dos meus 11 ou 12 anos de idade. Longos vinte anos depois, aprecio o seu trabalho e até me identifico parcialmente com seus personagens da fase nova-iorquinos-com-relacionamentos-conturbados. Assim também foi, por exemplo, com Clube da Luta, a princípio (aos meus olhos) brilhante e hoje uma papagaiada ideológica barata e hipócrita. E assim é com tantas outras referências e em muitos outros âmbitos: político, comportamental, afetivo, de lazer e etc, etc.

E graças a um novo recurso oferecido pelo Facebook, podemos rever postagens feitas em anos anteriores. Hoje, por exemplo, revi fotos publicadas, links compartilhados e novos amigos, tudo isso em outros 12 de outubro. Aí não sei dizer se, por um momento, o banhista vê seu próprio reflexo na superfície ou se surge um redemoinho nas águas, que se encontram e se misturam. Deste encontro emergem alguns detritos causadores de vergonha e arrependimento ou surgem tesouros para causar saudades e nostalgia. De maneira sinestésica, lembranças são desencadeadas e uma música ou trecho de filme compartilhados em 2011 podem lembrar dum momento profissional, daquele bom relacionamento já nascido fadado ao fim precoce ou de como a visão de mundo podia ser estreita, bem mais estreita - minha antiga inclinação ao libertarianismo que o diga. Que tenhamos todos muitas novas ocasiões para olharmos para trás e concluirmos: "até que eu melhorei".

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No entanto, às vezes se tem a impressão de que algumas águas nunca mudam. Talvez isto esteja correto ou alguns corpos d'água sejam lagos ou açudes e não rios e, inertes, tenham mais dificuldades ou até sejam incapazes de mudar. É possível que a mudança ocorra, mas seja imperceptível por se dar nas profundezas, escondida sob águas turvas. Isto me lembra das revistas de música que eu comprava todo mês durante a adolescência. 

Há os lagos que felizmente se mantêm os mesmos no decorrer dos anos e outros, infelizmente, também se mantêm os mesmos. Acontecia de um crítico elogiar grupos como Motörhead ou AC/DC devido à fidelidade da banda à fórmula sonora mantida por muitos anos e, numa mesma edição ou até numa mesma página, condenar Bad Religion ou Agnostic Front devido à fidelidade da banda à fórmula sonora mantida por muitos anos - entenderam? E o banhista se aproxima destes lagos, por necessidade ou curiosidade, apenas para confirmar que são exatamente os mesmos desde o último encontro. Enxergar seu próprio reflexo é uma das consequências possíveis: "O lago continua exatamente o mesmo, mas só agora reparo que eu mesmo mudei". Ou então, movido por curiosidade ou até otimismo, o banhista crê que houve alguma mudança, ainda que ela não seja tão evidente. E começa a busca-la mais e mais longe, arriscando-se nas profundezas, onde corre o risco de afogamento.


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