Num dia saio para jantar algo com uma namorada, levo a moça embora para sua casa, ligo o som do carro e inicio a volta ao lar sem pressa para aproveitar o caminho e ruminar a noite recém-encerrada. Atravesso as frias ruas do centro da cidade e não avisto nenhum vivente - um pouco pelo horário já avançado, um tanto por essa região já não ser bem frequentado a qualquer hora do dia e muito devido à reclusão crescente do campineiro, que entoca-se e expõe-se menos e menos. Desço uma avenida, contorno uma praça, corto um sinal vermelho e entro numa rua que desemboca na Francisco Glicério. Percorro todo o caminho até a Moraes Salles e noto um ou outro mendigo já deitados, os primeiros sinais de vida nesse concreto esterilizado. Quando já me aproximo do viaduto Laurão, finalmente me deparo com o personagem misterioso da noite: o andarilho.
Mais uma vez fico intrigado com um destes errantes noturnos. De onde vêm? Para onde vão? Como se arriscam a marchar por quarteirões tão inóspitos, pedaços da cidade evitados até dentro da proteção reconfortante da carcaça dum automóvel? Se tivessem como, creio que tomariam um táxi ou nem sairiam de casa, mas só Deus e eles sabem o motivo grave que motiva uma pessoa a correr esse risco. Talvez até já caminhem também fora das vias da normalidade - já houve uma ocasião em que presenciei um debate acalorado dum homem com o nada, com gestos, elevações do tom de voz e nenhum interlocutor para responder a tudo isso. Sigo meu caminho e, perdido entre divagações, antes de chegar à minha casa já esqueci daquele peregrino urbano.
O tempo passa e já não namoro mais aquela moça do Castelo. Mudei de bairro, de emprego, de hábitos. Já não tenho mais um carro pois moro perto de tudo de que necessito - ou do que adaptei às minhas necessidades. Devido às mudanças de hábitos, mudaram o corpo e a mente. Com ambos renovados, a auto-estima germinou e vingou, assim surgindo mais gente em meu caminho e mais oportunidades para sair da minha toca e ver o mundo. Por coincidência e conveniência moro nos arredores dos bares. Mais tarde saio e com a boa intenção de não desviar ninguém de seu caminho volto a pé para casa, "são só alguns quarteirões, não tem problema, sério". Na volta cruzo algumas ruas tão desertas quanto as que percorri em anos anteriores, vejo algum movimento na porta de alguns bares, gente parada nos postos de gasolina com alguma música ligada apenas como pretexto para não estar em casa.
Ao cruzar a Maria Monteiro percebo como um carro ainda distante reduz sua velocidade para que eu atravesse a rua e não interrompa sua passagem. Caminho devagar após completar a travessia e aí que me dou conta: sem notar quais foram os passos do processo de transformação, aos poucos virei um daqueles errantes da noite da cidade. Sem perceber, me tornei um deles - ou até já era, mas acostumado a um carro. E hoje vejo como é libertador caminhar na quietude noturna, na solidão do concreto gelado e com o medo alheio como minha segurança.
Caminhar na chuva é ainda mais reconfortante. Mas talvez isso seja coisa de um doido como eu, que há muito perdeu o contato com a normalidade e que vive em uma batalha pra ser o que se considera de minimamente aceitável na sociedade.
ReplyDeleteEm tempo, sempre fui um andarilho por não gostar de carros e nem de dirigir.