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Saturday, March 19, 2011

Setorização

Jogo da Ponte em partida válida por algum torneio nacional, em seus domínios, contra algum time de outro estado. Como a situação é corriqueira, nem preciso inventar detalhes como o nome do adversário, sua região ou o campeonato disputado. Porém, para facilitar meu trabalho, vou apenas chamar o rival de "América". Pois bem, falta pouco para começar o jogo e a torcida começa a ocupar seu lugar nas arquibancadas do Majestoso.

Renato, no meio de seus vinte e poucos anos, se aproxima do portão de entrada das cadeiras vitalícias após tomar uma cerveja comprada de um vendedor de rua. A cadeira é alugada, pertence a uma viúva que não vai mais ao campo desde que seu marido faleceu e ela não conseguiu mais lidar com tantas recordações de Moisés Lucarelli. O rapaz chega perto de um dos policiais que vai lhe revistar, o cumprimenta com um aceno de cabeça e ouve um "boa tarde" como resposta. O militar pede licença, passa a mão levemente pelas laterais do tronco do torcedor, pede para que o boné seja retirado e o dispensa com um desejo de bom jogo.

Roberto, ainda na "fila" para a entrada da arquibancada comum, apenas observa a massa à sua frente se arrastar lentamente rumo às catracas. Todos já se misturaram, algumas pessoas cortam a ordem com a desculpa de que encontraram um conhecido e as discussões só aumentam a desordem e a demora para a entrada. A execução do hino nacional deixa todos apreensivos e já se pede mais agilidade dos policiais militares, mas a única reação destes é mandar um soldado passar perto do público para tentar intimidar os mais exaltados. Alguns atritos surgem, torcedores se irritam, mas há muito mais gente para acalmar os mais furiosos do que para trocar agressões físicas.

Finalmente Roberto lidera a coluna de "macacos" e é chamado para a revista com um gesto sutil do soldado. Sem dizer nada levanta o boné de Beto, aperta a região de suas costelas, os bolsos de sua bermuda e a região entre suas coxas. Algo no bolso direito levanta suspeita e o PM pede para ele seja esvaziado, mas é apenas um chaveiro de um pouco pontiagudo. Tudo em ordem, então o pontepretano é liberado com um "pode ir" dito entre os dentes enquanto o próximo a ser inspecionado é convocado com um leve aceno de cabeça.

Por último, temos André, que não está nas vitalícias nem na arquibancada. Está no setor de visitantes com outros torcedores do América. O ônibus foi vítima da opção dos líderes da organizada de não pagar pela escolta dos policiais e foi avariado por uma pedra arremessada contra uma janela próxima da traseira, no lado direito e por um tijolo jogado contra o parabrisas. Ninguém foi atingido, todos chegaram bem, mas tiveram que esperar sentados no chão por vinte minutos até que fossem liberados pelos policiais sem receber explicação alguma - apenas um sermão longo adornado com dezenas de ofensas. 

Depois de revistarem mochilas, ônibus e até o bagageiro do veículo, foi a vez de conferir os visitantes, mas encostados no muro do estádio e de costas para a rua. Chutes foram usados para que os pés tivessem um certo espaço entre eles para a revista do cós, bolsos foram revirados e qualquer tentativa de um torcedor olhar para trás foi repelida com um "vira pra frente, seu filho da puta!". Quando finalmente todos foram checados, o policial a frente da operação mandou que os torcedores fossem comprar seus ingressos rapidamente e que entrassem sem gastar mais tempo do lado de fora.

"Todos são culpados até que se prove o contrário"... era isso, né?
 André foi à bilheteria, comprou sua entrada e recebeu um empurrão pois esperava um amigo fazer a compra. "Eu falei pra não ficar embaçando aqui, porra!" berra o colérico capitão paulista enquanto ameaçava puxar o cassetete. Finalmente dentro das arquibancadas, o torcedor americano tentou se aproximar da torcida rival para provoca-la, mas foi novamente ameaçado por policiais da divisa de setores. Desanimado, sentou-se no centro do setor de visitantes e observou como os torcedores do time da casa podiam xingar a vontade com poucas (ou nenhuma) repreensão. Também observou como alguns setores mal eram policiados enquanto os visitantes eram minoria frente aos oficiais que cobriam esse pedaço do estádio. Finalmente, percebeu que a melhor parte de comprar um ingresso melhor, ironicamente, trazia mais vantagens do lado de fora da cancha.

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