Pages

Friday, March 28, 2014

Clarinha

Texto que escrevi em setembro de 2011 para uma amiga que atravessava um momento turbulento.

Clara acorda antes do despertador de seu celular chegar a tocar. Revira-se, rola dum canto ao outro da cama, ocupa o centro e estica os braços para ocupar o máximo de espaço possível e tentar alcançar os limites de seu leito. Ainda falta mais de meia hora para o horário programado para despertar, mas já tem os olhos atentos à luz que começa a invadir as frestas da janela. Planeja mentalmente como será seu dia: café da manhã, saída para o trabalho, reencontro com a chata da Sílvia, pressão do Alencar no escritório, ligação enrolada para aquele cliente que sempre complica... enfim, uma série de obstáculos está no caminho de Clara - e, ao final desse percurso, vê que a relação de pancadas sofridas por sorriso recebido é péssima.

Força, resiliência e coragem são virtudes louváveis, porém nem sempre suas consequências são agradáveis. Jesus carregou uma cruz frente a inúmeros seguidores, mas poucos o ajudaram com o peso. Assim também é a luta contra os desafios diários: sempre há quem diga "Fulano é um guerreiro!", mas nem sempre aparece alguém disposto a lutar junto. Clara, então, percebe que o peso que repousa sobre seus ombros ainda é suportável, mas melhor seria se houvesse quem compartilhasse um pouco do fardo - ou, simplesmente, demonstrasse algum apoio mais contundente do que um sorriso dado à distância.

Agora faltam poucos minutos para o toque do despertador e Clara pensa como aquele espaço vago já foi menos abundante quando namorava. Reginaldo não era o namorado perfeito, as brigas tornavam-se mais e mais constantes enquanto o homem deixava de ser um companheiro para tornar-se uma nova responsabilidade dela. Agora, no entanto, tudo isso se desfaz numa névoa de esquecimento. Clara consegue apenas lembrar de como era acordada por Regis com um abraço que lhe cercava inteira, qual uma muralha que a protegia e a escondia do mundo lá fora. Esse fragmento de lembrança, esse breve flashback é capaz de faze-la se mover e agora já não se estica para ocupar o espaço da cama: apenas curva-se, gira e encolhe-se em posição fetal com um sorriso delicado e os olhos fechados.

Toca o despertador. Clara já estava desperta, mas perdida em sua memória e se assusta com o toque. Lembra-se então da diária de hotel perdida nas últimas férias porque Régis não queria acordar cedo para viajar. Seu sorriso dá lugar a uma expressão séria e aguda. Tenta voltar ao abraço e aos afagos imaginários, mas aos poucos os braços ficam distantes, perdidos entre brigas, discussões e momentos de tensão. Por fim, já não consegue entender bem como aquele carinho matinal podia trazer tanta paz - vindo de alguém que havia se tornado um distúrbio em sua vida.

A moça refaz os passos de sua memória e percebe que mal começara a pensar em sua solidão atual e já pulara para um momento com seu ex-namorado. A carência usa o disfarce da saudade e engana o solitário. Condicionada a receber afeto e carinho de Reginaldo, Clara foi enganada por uma rotina que já havia acabado a alguns meses e por um falso conforto que lhe dava sensação de segurança. Havia saído duas ou três vezes com seu ex após a separação, mas estas noites acabaram bem antes do abraço de bom dia dado por ele, então nem esse sutil alento estava mais à sua disposição.

Então ela vai mais longe e lembra-se do começo com Régis. Das primeiras conversas, das primeiras trocas de sorrisos, do primeiro (desajeitado) convite para fazer algo - "com todo o respeito, claro!", disse ele enquanto tentava parecer calmo mesmo ao gaguejar. Esse momento cômico a lembra de Eduardo, outro rapaz com quem ela saiu algumas vezes - Clara senta-se à beira do colchão, o despertador já toca pela segunda vez. Edu era o rapaz que visitava a empresa esporadicamente para fazer a manutenção dos computadores. Após algumas semanas de conversas no bebedouro, Clara voltou de mais um almoço com suas amigas e seu mouse não funcionava. Movia-o em círculos, horizontalmente, verticalmente e nada de resposta. Curiosa, levantou o periférico e encontrou um post-it preso ao leitor de movimento com o texto "Que tal um cinema? Edu".

Lembrar disto traz a mesma alegria do abraço vivido outrora com Régis. A breve certeza duma intimidade antiga não poderia mais ser melhor do que a expectativa de conhecer um novo alguém. Evidentemente, há a necessidade de exposição e o risco de ser rejeitada, mas Clara percebe, enquanto arruma a roupa de cama, que o arrependimento de voltar a uma zona de conforto que lhe é familiar é mais danoso do que o incômodo da incerteza.

2 comments:

  1. Nossa. Profundo. E quem não se identifica com pelo menos uma partezinha disso tudo?

    Seus textos sempre conseguem me fazer imaginar no lugar da protagonista e sempre termino de ler sentimentalmente tocada.

    ReplyDelete
    Replies
    1. Fico muito agradecido pelo comentário =) Aliás, "resgatei" esse post antigo só para não deixar o blog muito parado e foi uma experiência curiosa reler um texto, ver como a escrita muda, assim como os momentos... Recomendo que você tente o mesmo, mesmo que não vá republicar o post!

      Delete

comentários

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...