Aleksandr Solzhenitsyn |
No começo do ano, quando surgiu a polêmica causada pelo texto de Reinaldo Azevedo sobre o "metade gênio, metade idiota" Niemeyer, li uma coluna de Flávio Morgenstern no site Implicante e fiquei curioso sobre uma trilogia que até então eu desconhecia e que era minuciosamente detalhada nesta defesa ao "Tio Rei". A trilogia O Arquipélago Gulag, escrita pelo novelista, ativista, Nobel de Literatura e ex-capitão do Exército Vermelho Aleksandr Solzhenitsyn (1918 - 2008) durante seus oito anos de reclusão num gulag - apelido dos presídios criados para os campos de trabalho do regime comunista - narra o terror vivido pelas vítimas pelo regime da extinta União Soviética.
Eu já esperava uma leitura excruciante e perturbadora, mas jamais esperei um banho de sangue tão abundante: manifestações de rua reprimidas a tiros, execuções gratuitas, estupros, humilhações de toda espécie, tortura, abusos de poder realizados por líderes excêntricos e exílio - primeiro de pessoas e depois de povos inteiros. Tudo isto parece uma distopia fictícia, distante e improvável de Orwell, mas é uma compilação de relatos vividos por Aleksandr e coletados com cerca de duzentos outros internos de unidades do sistema prisional.
A longa trilogia percorre o mesmo trajeto dum sobrevivente dos campos soviéticos e começa com a prisão de suspeitos de atividade contrarrevolucionária. O autor do livro, por exemplo, foi preso no começo de 1945 por fazer comentários jocosos com outro oficial sobre os equívocos estratégicos de Stalin durante as campanhas da Segunda Guerra Mundial. Reclamações feitas entre amigos, pouco entusiasmo ao comentar notícias recentes do governo ou até mesmo interesses afetivos poderiam ser usados para denunciar inimigos do povo: caso um homem estivesse interessado por uma mulher casada, bastava denunciar seu marido e pronto, em pouco tempo ele estaria preso e o caminho, liberado. Se a denúncia e as provas fossem inconsistentes para se obter uma condenação, havia como arrancar uma confissão do acusado utilizando formas de tortura como esmagamento de genitais, queimaduras feitas com ferros incandescentes, privação de sono e outras atrocidades das engenhosas mentes dos torturadores da NKVD. Uma agência de inteligência precisava ter trabalho para sobreviver e, como um câncer, crescia e transformava qualquer um em opositor do partido.
Uma vez obtida a confissão condenação era formalizada através dum julgamento de faz-de-conta, sem testemunhas, júri, registro da audiência ou ponderação do juiz a respeito do caso. O escritor comenta a ironia da Revolução ter sido feita para lutar contra a tirania dos czares, porém atentados contra a nobreza e planos de golpes eram punidos com dois outrês meses de prisão domiciliar enquanto a pena para condenados sob o recém-criado artigo 58 (sobre crimes políticos) era de dez anos de trabalhos forçados - e depois de vinte e cinco anos. O primeiro livro é encerrado com capítulos a respeito do precário transporte dos condenados e a chegada dos sobreviventes aos campos. Uma curiosidade desta primeira parte da trilogia: eu achava que os gulags eram obra do governo de Stalin, porém Aleksandr informa que eles nasceram já sob o comando de Lenin e continuaram a existir mesmo após a morte do ditador georgiano.
Mapa dos campos |
O segundo livro descreve os perfis dos habitantes do arquipélago. Presos políticos, ladrões comuns, ajudantes dos carcereiros, dedos-duros, mulheres, crianças, poetas, religiosos, estrangeiros e até membros do Partido viviam amontoados e, vá lá, em até relativa harmonia entre si. Os partidários eram o grupo mais interessante: Solzhenitsyn tentou conversar com um jovem comunista e o questionou sobre sua prisão, porém ele se manteve irredutível e respondeu às questões sempre com uma correção na ponta da língua: ele não estava preso porque era culpado, mas por um erro de algum funcionário; a administração era impecável, então o funcionário errado na verdade era um sabotador; este ato de sabotagem não chegou a acontecer por incapacidade de seus compatriotas, mas por astúcia do sabotador, e assim por diante outros contorcionismos lógicos poderiam ser feitos enquanto nenhum dos interlocutores desistisse da conversa.
A última parte da trilogia fala sobre o trabalho forçado, sobre as primeiras rebeliões iniciadas após a morte de Stalin e de Beria e também sobre algumas greves realizadas pelos presos - ironicamente, revoltas dos trabalhadores contra os revolucionários da causa trabalhista. O final do livro trata ainda sobre o abrandamento do trato dos funcionários do sistema carcerário com os presos, sobre o exílio de povos inteiros e do autor no Cazaquistão e, após sua libertação em 1953, de seus esforços para denunciar e combater as condições dos que permaneceram presos.
Como escrevi no começo do post, tudo isto parece distante e até inacreditável, porém não faz muitos anos que ditaduras de proceder semelhante ao dos soviéticos passaram pela América do Sul e constantemente vemos notícias sobre desrespeito a liberdades individuais semelhantes aos relatados na trilogia Gulag, como: monitoração de dados privados, censura, tentativas de restrição ao armamento da população, repressão a manifestações e até o "disk-denúncia" para traidores da pátria. Recomendo a todos que leiam a obra, isto é, a todos que conseguirem encontrá-la: precisei comprar os livros no exterior porque não os encontrava de forma alguma por aqui. Mesmo se isso não for possível, é importante que se pesquise e que todos saibam deste período sombrio e sobre os milhões de vítimas de Stalin.
"Depois que li este livro comprei um rifle!" - Melhor crítica impossível |