Uma vez ouvi uma piada dum louco que não deixava em paz o bibliotecário do hospício onde ele vivia. Devorador de livros, a cada dois ou três dias o paciente aparecia novamente para pedir mais e mais obras novas, até que o bibliotecário, de saco cheio, entregou ao leitor inveterado uma lista telefônica da cidade de São Paulo. Passaram-se dois, três, cinco dias, uma semana; depois de vinte e cinco dias o louco voltou com a lista telefônica em suas mãos. "Você leu tudo isso?", perguntou o bibliotecário, incrédulo. "Li. Achei o universo de personagens muito rico, mas o enredo era confuso", respondeu o louco.
Essa piada, obviamente exagerada, se aproxima do (muito real) ímpeto de colecionador que vemos e, por vezes, praticamos. Colecionamos livros, tanto pelo objeto em si quanto pelo conteúdo: houve uma época em que baixei do Project Gutenberg vasto material de Filosofia e entupi meu Kindle com trabalhos de Kant, Espinoza, Nietzsche... Puro punhetação intelectual. O que eu lia, às vezes de maneira afoita, nem era aproveitado. Parte do que baixei, que eu jamais leria, compreenderia ou seria útil a mim, já foi até apagada depois que me recolhi à minha insignificância. Assim também é com filmes, que não transformarão ninguém em cinéfilo caso o espectador não tenha capacidade de interpretar o que vê e sensibilidade de captar o que se tenta exprimir. E assim por diante, também com discos, quadrinhos, séries televisivas e outras áreas onde podem prosperar os "acumuladores culturais" (?).
Comecei divagando comentando sobre esse instinto de colecionar, mas quero ser mais específico sobre a transformação de objetos em símbolos - representações concretas de algo abstrato. O livro talvez represente melhor isso atualmente: não importa de quem e sobre o que seja, um paralelepípedo de papel sempre irradia uma aura de cultura e erudição. Caso você saia por aí com algum livro de mais de 500 páginas, note como ele causa mais comentários a respeito de sua extensão do que sobre o autor, o título ou o tema abordado. Uma cerveja importada pode transmitir certa imagem de sofisticação, mesmo que seu consumidor não consiga diferenciá-la duma Brahma num teste cego. E como estes, há muitos outros objetos: a rebeldia implícita nas tatuagens, embora até Ana Maria Braga tenha a sua ou, no meio do heavy metal, toda aquela produção estética com roupas escuras, cinturão de balas, colete com patches de bandas obscuras e cara de mal, uma papagaiada que normalmente vira piada quando o metaleiro, perdão, o headbanger envelhece. Há estes e inúmeros outros casos, mas o post é dedicado às chuteiras pretas.
Parece estranho, mas me explico: há entre os torcedores brasileiros uma vertente mais saudosista que, ao expressar sua saudade do "futebol de antigamente", sempre enumera tudo que se perdeu no decorrer dos últimos vinte anos: estádios lotados, festas de torcida com várias bandeiras e outros materiais, jogadores mais "raçudos" e fiéis a seus clubes, uniformes com desenhos simples e... chuteiras pretas. E este último elemento, soterrado sob calçados coloridos e muito chorado pelos torcedores, "ressuscitou" recentemente com o lançamento duma linha de chuteiras inteiramente pretas, sisudas e tradicionalíssimas. "O futebol respira sem aparelhos", "Vocês estão revivendo a essência do futebol", "Chuteira preta moralizadora". Estes foram alguns comentários que encontrei na página brasileira da empresa. O melhor deles, no entanto, foi: "Os times que levaram o Brasil ao penta usavam a boa e clássica chuteira preta".
Ora, em 1958, 1962, 1970 e 1994 sequer havia o sonho de produzir chuteiras de outras cores. Aliás, antigamente elas ainda eram fruto dum processo bastante precário de fabricação. Com travas pregadas e material era grosseiro, calçá-las não era confortável. Duvido que um peladeiro atual preferiria enfiar seus delicados cascos numa botina como as usadas décadas atrás. Em 2002, última Copa do Mundo conquistada pelo Brasil, chuteiras coloridas já estavam nos pés de Ronaldo, Roberto Carlos e Rivaldo. E se até este pernambucano, um jogador sempre tão sério e pouco dado a espalhafatos, foi um dos pioneiros do uso da chuteira colorida, quem garante que outros mais antigos como Garrincha, Dadá Maravilha ou Renato Gaúcho, apenas para citar alguns, não o fariam?
É a transformação das chuteiras pretas num símbolo destas tradições do futebol. Como se, por uma simples questão de quórum, o "futebol de antigamente" pudesse ser trazido de volta através da reunião dum certo número de jogadores calçados da maneira adequada. (Spoiler: ele jamais voltará). Ou que os atletas/popstars atuais, muitos deles tão megalomaníacos, narcisistas, blindados e preocupados com qualquer coisa, menos com o domínio dos fundamentos do esporte, não se transformaram cada um num Clébão apenas por um acidente do destino, que não lhes permitiu calçar um par de chuteiras pretas - o que faria com que tudo fosse diferente e evitaria a existência de David Luiz como atleta profissional. E esse desejo coletivo não passa despercebido, tanto que ele é notado como segmentação de mercado. O desejo se materializa no símbolo que, por sua vez, é capitalizado e transformado em marcadoria. Como os livros, as cervejas especiais, as tatuagens, etc, etc. E assim caminha a humanidade.
Se até Zidane usou chuteiras coloridas, amigos, acho que elas não são de todo ruins |